quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Somos Tão Bons

 

Somos pessoas tão boas, não somos? 

Mentira. 

Somos seres corruptos. Gostamos de parecer mais importantes do que realmente somos. Porque a nossa mediocridade não nos satisfaz. Mas a nossa preguiça em aprimorarmo-nos, seja lá no que for, é maior. Então mentimos. Ou falseamos a verdade. Induzimos o outro a nos julgar mais poderosos, mais inteligentes, mais estudados. Contraímos empréstimos para pagarmos o carro que nossos rendimentos não nos permitem ter, usamos maquilhagem para parecermos mais jovens, cintas para parecermos mais magros.

E vamos à igreja aos domingos. Sim, porque somos praticamente santos. O pináculo da criação. Ou não vamos à igreja porque a religião é corrupta e alardeamos que somos contra a corrupção. E sonegamos impostos. 

Repassamos posts nas redes sociais, revoltados com a fome na África e com a exploração infantil na China. E usamos as roupas fabricadas pelas pequeninas mãos exploradas pela indústria da moda, que reduzem seus custos à custa do sangue e da fome alheios. E escolhemos a alienação. Não vimos, não sentimos. A crítica serve para o outro e a desculpa serve para nós. 

Dizemos que sim, amamos os animais. Comemo-los porque somos onívoros. É a indústria que os tortura. Mas mantemos o nosso cão acorrentado no quintal, preso dia e noite, no verão e no inverno, por toda a vida. A ele, damos os restos da nossa comida. E tiramos fotos do nosso amigo, e sorrimos e nos sentimos benfeitores, porque este cão foi acolhido por nós, tem um lar. 

Revoltamo-nos quando descobrimos que um amigo nos criticou pelas costas. E criticamos impiedosamente este mesmo amigo, o vizinho, o cliente, o patrão, o empregado. Porque a falha do outro enaltece-nos. Nós não somos maus como os outros. Somos pessoas tão boas.

Verónica Vidal


Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano.
O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano.
Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo.
O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!
Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado. (Lucas 18:10-14)




segunda-feira, 17 de maio de 2021

Nasce uma Estrela ou... um Escritor


 Já há cerca de um ano tenho este texto aqui meio escrito mas, por uma questão de elegância, fiquei à espera que primeiro o autor da obra abrisse a apresentação do seu livro. E já lá está, conhecido do grande público, o novo livro do Pedro Guimarães, "Criadores de Estrelas".

Não guardo segredo nenhum que, vez por outra, sou acometida de paixões lancinantes por alguns escritores. Sou mulher eclética e sem preconceitos e, do mesmo jeito que me apaixono por Isabel Allende ou Margaret Atwood, morro de amores por Valter Hugo Mãe, Saramago e Murakami Às vezes tenho até um certo receio de ser acusada de stalker ou qualquer coisa assim. Minha sorte é que muitas vezes o objeto da minha paixão já está morto e bem morto há muitos anos e a única coisa que eu persigo são mesmo livros. Livros não nos processam por perseguição.

Conheci o Pedro Guimarães - é, agora sou assim, tu cá, tu lá com o senhor - na apresentação do seu primeiro livro, "O Diário de um Morto", que me proporcionou grandes momentos de gargalhadas descontroladas e aquela cara estampada de tonta que só um leitor sabe que faz quando está imerso numa obra. Sim, caro amigo aficionado pela literatura: Você também faz uma cara peculiar quando mergulha numa obra assim, descuidadamente, em público. Pois bem, o então autor Pedro acabou por lançar um outro livro, igualmente delicioso e facilmente devorável, o "Crianças, Bichos e outros Patifes".

Ocorre que, a dado momento, escrever caiu-lhe no gosto e o senhor lá decidiu-se por lançar outra obra. Desta feita, não mais na primeira pessoa, mas um livro de mistério, romance e assassinatos, não necessariamente nesta ordem. E lança o "Criadores de Estrelas". Como já havia sido fisgada, li-o, claro. E durante o desenrolar da história, começo a perceber, no avançar das páginas, o nascimento de um escritor. Lembrei-me da personagem da Lady Gaga no filme (mentira, lembrei mesmo foi do Bradley Cooper, mas isso é outra história). Aquele que antes era autor de boas histórias, que contava experiências vividas na pele - dele próprio ou de outrem -, inicia agora a construção de um mundo imaginário, ainda que real. Entretanto, conseguiu manter a doce assinatura que fez com que nos apaixonássemos pela sua escrita. Se nos dois primeiros livros ele declara o amor pelas suas raízes, pela sua mulher e pelo seu neto, neste o Pedro declara o seu amor pela cidade de Coimbra. Os personagens passeiam pelos recantos da cidade e arredores e, de brinde, somos nós também transportados. Sem uma gota de pretensão, mantendo a linguagem simples e a narrativa direta que acabou por se tornar a sua assinatura, Pedro Guimarães deixa, com este livro, de ser um contador de histórias para ser um escritor. Presenteia-nos com uma crônica policial, meio ao estilo Rubem Fonseca, meio a jeito de conversa, que nos agarra às páginas, nos alimenta. Livro bom é aquele que agrada e Criadores de Estrelas agrada, põe-nos um sorriso de satisfação na cara. 

"O que realmente me impressiona é um livro que, quando você acaba de lê-lo, você deseja que o autor que o escreveu fosse um amigo incrível seu e que você pudesse ligar pra ele quando sentisse vontade." - J.D. Salinger (O Apanhador no Campo de Centeio(BR) /Uma Agulha no Palheiro(PT))

Verónica Vidal

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A vida a preto e branco


 Tenho saudades de mim mesma. Saudades de um eu que cá está mas que já não se mostra. Saudades de uma vida que a mim me sorria e eu para ela sorria de volta. Saudades de uma inocência que nunca mais voltará.

O passar do tempo cura feridas mas abre crateras. Aumenta distâncias, desfaz mitos, deixa cicatrizes e molda-nos o sorriso. Geralmente o rouba de nós. Vejo crianças muito felizes, a saltar poças d'água, a brincar nos baloiços. Vejo adolescentes em bando a rir de um tudo e de um nada, a criar uma linguagem única. Vejo jovens casais enamorados, a tocarem-se, a abraçarem-se, a sorrir. Vejo adultos preocupados com as contas da vida. Mudos. Vejo velhos tristes, à espera da morte. Estáticos. E pergunto-me o porquê. Quanto mais o tempo passa, menos sorrisos vemos nos rostos dos que vivem, menos vida vemos nos rostos dos que esperam diligentemente pela morte. A vida se descortina aos poucos e vai se mostrando, nua, seca. As cores, antes tão suaves e doces se vão escurecendo, acinzentando-se, perdendo o brilho. O céu, outrora azul, torna-se plúmbeo. E ainda tentamos, escavamos em busca da alegria da meninice, da inocência do antigamente, num eterno faz-de-conta-que-eu-não-sei, na vã tentativa de uma felicidade mentirosa. Boa. E falsa. 

De tanto escavar, cansamos. E vestimos as nossas vestes cinzentas. E esperamos a morte chegar.

Verónica Vidal