quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Nas Covas da Memória

E em mil novecentos e antigamente, minha vida mudou. Eu me mudei, perdi contatos preciosos, amigos queridos, porque antigamente não havia internet. Sim, inacreditavelmente vivíamos sem os Facebooks, Orkuts e Tweety era chamado de Piu-piu e fugia do Frajola. Nem e-mail havia. Então, bastava mudar de bairro ou de escola naquela grande Rio de Janeiro ainda sem bala perdida que os amigos se esfumaçavam, perdidos na distância do tempo e no curso da vida.

Até que a tecnologia aportou por aquelas bandas e presenteou famílias brasileiras com seus primeiros PCs. Mais um carnê do Ponto Frio se juntava ao das Casas Bahia e mais uma conta se agregaria à do telefone. Era a conta que nos ligaria ao mundo: A conta da Internet! E assim nossa vida de classe média baixa foi ligeiramente mais achatada por um viciante luxo. E graças a este pecado consumista pude manter o contato com amigos e familiares, mesmo tendo mudado de escola, de igreja, de bairro, de cidade, de país e de maridos. Não, não irei ao dentista. É caro. Sim, preciso de um laptop, os dentes que esperem.

Pois assim fui pescada no mundo virtual por uma antiga colega de colégio - já vos havia escrito isso aqui, em "COMO ANTIGAMENTE" e a partir dela, pude manter contato com outros colegas. Um deles, vive relativamente perto de mim. É hoje o meu amigo mais próximo, vivendo a 500 km de distância. E lá fomos nós, eu e minha cara-metade, pagar a visitinha que meu amigo nos havia feito mês e meio antes. Adoro pagar visitinhas. Ou melhor, só pago visitinhas que gosto, as outras, ficam na dívida.

Temos uma vida feita de compartimentos. É um pedaço para o trabalho, para o relacionamento com o chefe/subordinados/patrão/clientes, um pedaço para o marido/namorado/caso/ficante, outro para a família, para os amigos, para isso e para aquilo. Mas poucas coisas nos dão maior prazer do que este espaço reservado para o resgate. Sim, o resgate de uma época que sabemos que nunca mais voltará, o resgate de pessoas que passaram por nossas vidas, o de momentos, o de folhear álbum de retratos. E conjugar o resgate do passado com a realidade presente, é delicioso. Não faço o estilo saudosista, já disse muitas vezes. Acho que o hoje é sempre melhor do que o ontem, ainda que pareça pior, pois só hoje eu tenho a oportunidade de transformar o amanhã para melhor. Ali eu vi um menino de cuja voz eu mal me lembrava, gerindo uma família de esposa e dois filhos. E muitas vezes olhei para o menino grande e conseguia enxergar o menino pequeno. Será que eu consigo ainda carregar a minha menina pequena, depois de tantas andanças por aí?

E a vida do meu amiguinho é hoje um retrato colorido. Assim como eu, deixou para trás as ruas imundas e os muros pixados da zona norte do Rio de Janeiro para viver nas arborizadas cidades do primeiro mundo. Desfruta de um conforto impensável no Brasil e absolutamente normal por aqui. E nos levou a almoçar num restaurante dentro de uma cova. Sim, cova. Não, não cova de defunto. Uma região vinícola que guarda ainda as covas - grutas encravadas na terra - onde se mantinha o vinho, tranformada hoje em restaurante. Tudo muito europeu. E nos despedimos com aquele jeito de quem vai na esquina e já volta, como se não tivesse havido 27 anos de distância. E nas gavetas da minha memória, mais uma fotografia a preto e branco ganhou cores vibrantes, mas foi também mais um adeus que deixou um misto de alegria  e um amargor de saudade, como se o meu coração quebrasse aos bocados e ficasse espalhado por aí, pelas covas da memória, pelas entranhas da vida.

Verónica Vidal

Aos Pilet, meu muito obrigada, por compartilharem conosco momentos deliciosos. Guardem o pedaço do meu coração que por aí deixei.