sábado, 31 de agosto de 2013

A menina e o cookie

A menina brincava de bonecas de papel, casinha e Barbies. Vivia no seu mundo cor-de-rosa de menina. Todos os domingos, vestia o seu melhor vestido e tocava piano para encantar as visitas, que muito se admiravam do bom comportamento da menina. Não dizia asneiras e na escola suas notas eram azuis como o mais limpo céu.
 
Um dia, a menina foi à cozinha e viu um cookie.
 
Era um cookie num jarro de vidro transparente. Um daqueles cookies cheios de pepitas de chocolate. O jarro de vidro estava fechado, em cima de uma prateleira muito alta, impossível da criança alcançar.
 
Mas a menina passou a ir à cozinha mais vezes, por gosto até. Sabia ser o cookie um biscoito, nunca tinha comido um, mas aquele não era um biscoito como as bolachas de leite lisinhas que lhe davam para o lanche. Era diferente. As imperfeições da sua superfície o tornavam tão fascinante que ela já não podia mais parar de pensar nele. Sabia perfeitamente que o cookie não era para ela. Cookies são para adultos, não para meninas pequenas. As pepitas de chocolate sujariam seu lindo vestido. Ela sabia disso. Ainda assim, começou a pensar em formas de chegar à prateleira. Uma escada, talvez. Não, poderia cair e quebrar a perna.  E como abrir o vidro?
 
Ser uma menina bem comportada e que toca piano é muito difícil.

Verónica Vidal

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Liberdade na Mordaça


E porque esta minha língua enrolada, que misturou-se a línguas estrangeiras e  perdeu-se no sentido e na loucura e castigada foi de tanto falar o que lhe ia na alma mas que socialmente não era aceite dizer, insiste em tentar buscar sons onde não existe eco. Porque já adormecida estava, e entorpecida e largada, fui então sacudida e despertada, arrancada do lodaçal da minha mesmice, do doce conforto da minha gaiola, para o rasgar do desejo incontido, do proibido gritante, sem palavras para gritar. Porque  tinha que haver música, tinha que haver dança, tinha que haver poesia, tinha que haver risos, tinha que haver paixão. Era imperioso fazer-me perder o fôlego, fazer arder-me estômago, tremer as pernas, na vontade surda da fusão, o unir de bocas, o juntar de corpos, o lamber suores, mas como é quente aqui! E o meu coração mostruoso, adestrado para calar, nasceu de retalhos picados, como um Frankenstein de Mary Shelley, parte dócil e castrado e a outra furiosamente egoísta.


Verónica Vidal - ser boazinha todos os dias é muito chato. Quer dizer, deve ser. Eu nunca fui. Nem um dia.