terça-feira, 27 de março de 2007

A CASA DA MINHA AVÓ

Cheguei já passava das duas da tarde. O almoço já havia sido servido na varanda e retornou à mesa para ser novamente servido, devido à minha chegada. Este ritual repetiu-se ainda pelo menos umas duas vezes, quando da chegada de outros membros da família, outras famílias recém formadas, todas à volta da família original. Esse foi o almoço de domingo na casa da minha avó.

A casa da minha avó é tudo menos uma casa de vovó. É salão de festas, é abrigo de desvalidos, é retiro. É interessante como tudo gira em torno da casa da minha avó e quem não gira aí perde um bocado de coisas boas, de conhecimento do eu e do outro. Todo mundo que nasce e todo mundo que morre terá seu nascimento comemorado ou sua morte chorada na casa da minha avó. Comemora-se mais do que se chora lá. Não que tenhamos mais bebês do que defuntos, mas a família não tem talento para o choro. “...levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima...” foi um trecho de música criado por alguém que visitou a casa da minha avó. Se não chegou a visitar, deveria, pois é o retrato da família. Dá até para processar por plágio.

O almoço foi dado pelos 50 anos da minha tia, que mora em Salvador. Poderia ter sido por qualquer outro motivo. Foi-se o tempo que futebol era um motivo, mas agora, com os times do Rio dando vergonha e com a seleção, bem, deixa pra lá.

Minha tia é bonita desde que nasceu. Acho que vai ser bonita sempre, até os 180 anos. Na casa da minha avó tem de tudo. É praticamente uma Macondo de Garcia Márquez: a tia lindíssima de quem acabo de falar, a tia certíssima que não erra nunca, pois, quando Deus derramou sabedoria sobre ela, deu porção dobrada, paciente, que namorou 200 anos o mesmo homem e casou-se – aliás, a única que honra o “até que a morte os separe”, o que comprova a teoria de que namorar é a melhor pedida. Tive um outro tio que expirou contando com apenas uma esposa no currículo, mas, seguindo a tradição da família, falemos de quem está vivo e deixemos os mortos para as doces lembranças. Tem o tio que tem filhas mais jovens que seu neto, o que casou com a ex-namorada, tem a tia que deu grito de independência, tem uma mistura de cores e rostos, de sotaques e de personalidades, que fazem de todo o bolo uma obra de arte. Tem os filhos que são filhos, os filhos que não são filhos, os que nasceram na família e os que se tornaram parte dela. Eu, de minha parte, vejo minha avó orquestrando este balé de vozes e cores, com batuta invisível. Vejo minha avó se multiplicando em diversas novas famílias. Vejo a cara do novo no rosto da minha prima que começa a formar nova família ao acabar de perder a sua. Vejo que Deus é especialmente generoso com esta, que é a família da minha avó.

Todos os causos são contados na varanda. Tudo no mundo aconteceu com alguém dali e, se você quiser aprender a ouvir 15 pessoas ao mesmo tempo a contar diferentes coisas e responder às 15 de igual forma, vai passar uma tarde lá. É sucesso garantido. Não há plenário político que ganhe da varanda da casa da minha avó.

Creia que há quem dispense essa magia. Há quem receba o convite e não compareça. Tenho dó do tempo que perde, mas tenho esperança que um dia, desavisadamente, vá bater na casa da minha avó. E aí se lembre das noites de Natal, das festas de Ano Novo, do cajuzinho de aniversário. E então reenxergue a mistura de cores, reouça o burburinho inconfundível da alegria e enterre a secura do desapego.

Vó, vou levar colchonete para dormir aí no Natal.

Verónica Vidal  - Avó é muito bom, mas a minha é ainda melhor. Ela é mágica.