terça-feira, 13 de novembro de 2012

Com um bocado de sorte, chego lá!

Gosto do meu canto, gosto de bons livros, detesto livros ruins, gosto de estar sozinha, odeio solidão. Adoro passear, mas não gosto de multidões, de ser apertada em lugares abafados e odeio fedor de cigarro. Enfim, sou das pessoas mais chatas que alguma vez já conheci. 

Passei por uma senhorinha, muito velhinha, que descia uma ladeira calçada de pedras. Tinha o andar vacilante próprio das senhorinhas velhinhas. Sua filha gritava com ela: "Despacha-te, mãe! Senão largo-te aqui, bem no meio da rua!" A peste da filha devia ter uns 50 e tantos anos, se tanto. E puxava a senhorinha pelo braço,  na infrutífera tentativa de apressar-lhe os passos. Tive vontade de bater na mulher. Tive vontade de matá-la, de estrangulá-la com minhas próprias mãos e ver sua cara grande e roxa entumescer de sangue e ela morrer sufocada. Odiei-a naquele preciso momento, pela forma com que ela tratava a mãe. Mas nada fiz, pois não se pode sair matando as pessoas e, na minha inércia, odiei-me a mim mesma por nada fazer. Mil velhos mal tratados passaram pela minha memória. Eram velhos que cruzei nos hospitais, eram pais de conhecidos que passavam fins de semana ora na casa de um filho, ora na casa de outro e tornavam-se antes um estorvo do que um prazer, eram idosos acamados abandonados em lares e sem visitas, cujos filhos viviam por ali, ao redor, mas alegavam não terem tempo para visitarem os pais ou quando muito, o faziam para serem vistos pelos olhos críticos de outrem, em visita tão rápida quanto o vento.

Penso que se meus pais fossem vivos, seriam velhos agora. Não tenho a sorte de tê-los comigo e se os tivesse é certo que não os trataria como a mulher peste de cara grande tratava a mãe. É bem verdade que pais nunca podem ser substituídos, mas podemos sempre ser confortados e Deus me deu o conforto de ter bons sogros, e eu roubei-lhes o carinho para colocar no lugar dos meus pais. Tenho os melhores sogros do mundo. Quem os ama cai nas minhas graças, mas se alguém tem a estúpida idéia de os prejudicar, meus instintos assassinos afloram com uma rapidez sem tamanho. Eles são ainda fortes e independentes. Mas pode ser que chegue um dia que fiquem fracos e dependentes. Espero que, chegada esta época, eles tenham paciência comigo. Pois eu lá estarei. E eu sou muito chata. É que eu não gosto de cigarros, nem de lugares abafados, nem de multidões. Mas ando devagar, se preciso for.

Verónica Vidal - Tem coisas que eu não entendo. Outras, nem quero entender.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Elas são cariocas!

É pois é. Eu andei um tempo caladinha, com medo de escrever e pagar imposto por isso. É que por cá, anda um Coelho a dar uns Passos trocados e quem sofre somos nós, que perdemos os nossos parcos trocados. Com a esfarrapada desculpa de que um tal Sócrates andou filosofando em causa própria, vimo-nos agora todos gregos para pagar as crateras lunares desvendadas em pura ironia socrática, mostrando a tolice e os absurdos somente e obviamente no governo seguinte, como é de praxe. Pois era de tanto ouvir esse trelelê nos telejornais e nas conversas de boteco por aqui, que dava-me uma preguicite mortal de escrever qualquer coisa. Pura falta de inspiração.


Até que uma garotinha muito miudinha aparece à minha frente. Tamanho de criança, jeitinho de 12 anos, mas 22 nos documentos. Para melhorar o pacote, ela é carioca, ela é carioca, olha o jeitinho dela andar... Pronto, minha carioquice forçosamente hibernada nestes 5 anos de fados conimbricences emergiu abruptamente, assim mesmo, de sopetão, e já queria eu levar a menina para casa, colocar lacinhos e vesti-la com um vestidinho de organza, mas a razão falou mais alto. Convidei a menina para passear, para conhecer os arredores da cidade. Bem assim, no melhor estilo carioquês de ser: Passo lá na tua casa, quer levar uma amiga? E ela levou duas. Nada poderia ter sido mais perfeito.
E assim, 3 meninas brasileiras, melhor do que brasileiras, cariocas, com todo o seu diferencial, cada qual com o seu jeito, cada qual com os seus gostos e todas se entendendo perfeitamente. Tem a apaixonada por cachorros e as que amam cachorro (quente). Tem a vegetariana e a que come de tudo e nunca engorda. A que namora desde sempre com seu doce príncipe e a que ainda faz uni-duni-tê e não namora ninguém. E eu, me fantasiei de tia inventada na hora, meio assim, feito bolinho de chuva que a gente vai fazendo sem receita. E fui roubando delas um bocado de risadas, um pedaço de alegria, uma nesga de sorriso. Aplaquei as saudades das minhas filhas e tive a certeza mais do que certa de que Deus vai me dando remédios santos à medida que eu necessite deles. É provável que nos dê a todos, apenas alguns de nós têm olhos para ver e outros simplesmente deixaram que a catarata da melancolia e da autocomiseração os cobrisse.

Veronica Vidal
Ainda exilada, com saudades e com frio, mas perder o sambalelê, jamais!

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O Aniversário Pascal da Minha Avó Alice

Os de ontem, os de hoje e os de amanhã, na varanda, com a minha avó.
Quando eu era menina pequena, a Páscoa era sinônimo de ovos de chocolate embalados em papéis coloridos, coelhinhos de chocolate, almoço na casa da vovó, enfim, festa. Havia uma preparação anterior, uma certa introspecção religiosa que era traduzida na minha infância em dias livres de escola, ir para a casa da minha avó e malhar o Judas ao pé da jaqueira, com o Beto, o tio Vano e o tio Cica, nossos grandes heróis da malhação, os 3 Mosqueteiros do Sábado de Aleluia.

Já muito mais tarde fui aprender o significado da Páscoa, a libertação do povo hebreu da escravidão do antigo Egito, as 10 pragas, Moisés e a posterior celebração cristã, a libertação do homem da escravidão do pecado através do sacrifício de Jesus Cristo. As famílias se reúnem, comem juntas e festejam. 

É bem verdade que já fazíamos exatamente isso, sem entendermos muito bem o significado profundo dos encontros pascais. Reuníamos na casa da vovó toda a família. Comíamos e bebíamos, felizes e livres. Éramos livres por amor. 

Minha avó faz aniversário dois dias depois da Páscoa este ano. A comemoração será na casa da minha madrinha, onde toda a família se reunirá, aproveitando estas duas datas célebres. Os 3 Mosqueteiros de outrora são hoje heróis noutros reinos, as crianças que malhavam o judas geraram filhotes ou voaram para outras estrelas. Mas ainda assim toda a família estará lá reunida na mesma varanda da casa da minha avó, porque a verdade é que aquela varanda também deu filhotes. Eu mesma vi, ninguém me contou. Eu vi a varanda da casa da minha avó na casa da tia Denise, no dia da feijoada. Muita gente já viu. Muita gente notou a mágica. É mágica herdada, não é mágica aprendida. A varanda da casa da minha avó também nasceu na casa da Licinha. Eu não pude ir, só vi nas fotos e ouvi falar. E falei por telefone. Mas o burburinho que se ouvia através daquele telefone era exatamente o mesmo, aquela mágica mistura de vozes, um não-sei-quê que só se entende quando lá se chega, deu-me a certeza da maternidade daquela varanda. Agora, que a varanda da casa da minha avó nasça também aí, na casa nova da minha tia Gisele, no dia da Páscoa, na celebração da liberdade pelo amor, na celebração do aniversário da minha avó Alice, que me ensinou que, mesmo estando longe, eu não posso chorar de tristeza, porque afinal, longe é um lugar que não existe, pois o amor transborda fronteiras e, se Jesus venceu a morte na cruz, quem somos nós para chorar por meros quilômetros? Se uma varanda nascida em Jacarepaguá no Rio de Janeiro, pode magicamente dar filhotes em Salvador, em Maria da Graça e em Pedra de Guaratiba, porque eu não estaria no aniversário pascal da minha avó Alice?

Tendo dito isso e já sabendo que a minha tia Gisele vai me dar um ovo de Páscoa de papel dourado porque, mesmo estando eu já crescida ela no fundo sabe que eu sou criança e me chama de Veônqui, e que minha tia Denise vai botar a criançada toda para dançar lá fora, e a gente bem sabe que é estratégia para não atrapalhar a trabalheira dos adultos, e que os rapazes vão colar no churrasco, minha avó Alice vai olhar para esse delicioso carnaval e terá a certeza de que nenhuma riqueza no mundo pode suplantar a vida e o amor que pulsa nessa família, que pode até ser o retrato da sua, mas que, com toda a certeza, é mágica.

FELIZ ANIVERSÁRIO, VÓ
Feliz é aquele que escolhe ser escravo por amor, que ata seus próprios laços, que constrói suas próprias amarras. Eu escolho estar atada por amor. Eu te amo, Vó.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Amor, transformado

2012 é um ano muito novo, com tudo novo de novo. Nasceu Gustavo, ainda no ano velho, neto do meu marido, que seria meu novo marido, mas já lá se vão quatro anos e este já lá é o terceiro casamento, sendo então um velho marido e eu me abanquei de avó do netinho, sem dar a oportunidade a ninguém de me enxotar e dizer que eu não tenho nada a ver com a coisa, pois se eu não estava cá para fazer a filha azar o deles, mas aqui estava eu para receber o neto, isso sim, de mim ninguém tira.

Já estou no Velho Mundo  há quase 5 anos e ainda esperneio para me adaptar. É preciso cavar o calor dos trópicos por estas bandas. Não o calor do sol, este também, mas falo do calor nas pessoas. Mas que ele existe, existe sim, e de que maneira! Só é preciso encontrá-lo, desenterrá-lo, tirar o véu. O amor aqui é muito mais traduzido na comida quente, no azeite sobre o bacalhau, no pagar um almoço ou um café, no matraquear do fim da noite, numa árvore plantada no jardim, do que no nosso rosário sem fim de eu-te-amo-eu-te-adoro tupiniquim, que expressa muito com músicas e palavras, e bem menos com ações.

Minha filha está para chegar, a fim de passar as férias comigo. Sinto-me prestes a parir, numa azáfama de preparativos infindáveis, naquela mistura de querer que ela chegue amanhã e precisar de tempo para tricotar mais um sapatinho. Meu marido plantou uma oliveira no jardim. E um pinheiro. E mandou trocar os estores. E ralhou com o homem dos vidros que nunca mais vinha colocar as janelas na marquise. É o jeito dele de dizer que me ama e que, por extensão, ama minha filha, e que ela seja bem-vinda. Quer a casa composta "para parecer bem". Nunca chegou a dizer exatamente isso, mas é assim que é. As palavras de amor por aqui vêm em forma de coisas. E é deste mesmo jeito que ele traduz tudo aquilo que não tem nome. Coisa.

Eu não sei plantar árvores nem tricotar sapatinhos, mas amo o Gustavo porque amo e não por extensão, mas por reflexo. Não tem uma gota do meu sangue, mas carrega todo o meu amor, até à última gota. E é neste círculo, onde cada um fala uma língua, que ele há de crescer. E há de ser poliglota de almas, pois desde cedo receberá amor falado e transformado em coisas. Amor é das poucas coisas que, sendo muito, nunca é demasiado.

Verónica Vidal - ainda aprendendo que existem muitas formas de falar amor, e que não há acordo ortográfico possível que estrague essa deliciosa diversidade.