segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Natal III - Sobre esta Pedra edificarei a minha vida

No dia 26 precisávamos devolver o carro que tínhamos alugado. Fim de ano no Rio de Janeiro é sinônimo de cidade lotada, todos sabemos disso. Fazer reservas com antecipação, é obrigatório. Até mesmo nas Rent-a-Cars. Mas eu não estava nada triste, a cidade é bem provida de tranporte público, não tínhamos intenção de ir para longe e encontrar estacionamento na Zona Sul já se havia revelado um martírio. Ok. 

Eis que tia Denise - a tia miss, que apaixonou-se pela Bahia e pelo baiano, não nesta ordem, é claro - telefona e diz: "Vamos à casa da Gisele?". Eu já sabia que iria lá, não sabia como, mas iria. Falei com meu marido, que de férias topa tudo, até fila do INPS, e pedimos instruções para lá chegar. Ora bem: Tia Denise não vive mais no Rio há uns muitos anos. Eu não vivo mais no Rio há uns outros tantos. Como ir de ônibus de Botafogo à Pedra de Guaratiba? Resultado: 1:20 min à espera de um ônibus que nunca vinha, um português sentado na calçada e o tempo a correr. Telefonei de volta à minha tia e resolvemos pegar um ônibus comum para a Barra, e de lá pegaríamos um BRT, conhecido como "Ligeirão". Parecíamos duas figurinhas recém saídas de uma comunidade amish: Tudo era novo, tudo era "fixe". Desejei ter um Ligeirão do Zambujeiro a Coimbra. Fiquei a pensar porque os brasileiros engrandecem suas coisas ao batizá-las, como Ligeirão, Orelhão, Mineirão, Mergulhão, Mensalão... Bem, melhor deixar essas conversa para outra hora.

E, depois de muitos telefonemas daqui pra lá, de lá pra cá, chegamos. Minha madrinha estava à nossa espera na saída da estação. Tio Carvalho ao volante, abraços e beijos e lá fomos conhecer sua casa nova. Muitas coisas aconteceram naquele dia. Muitas coisas com palavras e montanhas de coisas sem um único fonema. Havia lá uma peixada à nossa espera. Segundo o meu Mário, o melhor almoço que ele já teve no Rio. Mas esse é o jeito dele de dizer: "Caraca, isso aqui tá uma delícia" (livre tradução minha).

Depois do almoço, Mário se esparrama na rede da varanda, enquanto eu e minhas tias tagarelamos na sala. Mulheres falam muito, eu sei. mas nós juntas, falamos mais. 

Tia Gisele e seu marido, Mário Carvalho (sim, ele também é Mário, um tipo porreiro, como diz o meu), vivem na Pedra de Guaratiba há uns tantos anos - sou péssima de datas, não exijam muito de mim - e são pastores líderes de uma igreja protestante. É óbvio que a vida não foi sempre assim. Ele é um tipo bonachão e prático. Ela é um tipo carismática e doce. 

Eu tenho uma relação muito especial com a minha madrinha. Sei que não é uma relação de amor em via única, há reciprocidade e muita, mas é que há coisas que não se explicam em palavras, porque não há letras suficientes para desenhar determinadas relações. Ela é jovem demais para ser minha mãe, mas nossas vidas sempre se entrelaçaram de um jeito ou de outro, empurradas por um não sei o quê de misterioso. Ela lá estava no meu primeiro emprego. E no segundo. Nunca me olhou torto e nunca me julgou. Sempre me abraçou. E passados muitos anos, quando ficamos pessoas grandes, conhecemos o mesmo Deus, e professamos a mesma fé, e falamos a mesma língua. E hoje eu olho para trás e vejo que esta é a língua que falamos desde sempre, o que não tínhamos era bons ouvidos. 

Saímos de lá com muita pena. Pena de não termos ficado mais tempo. Pena de não termos ficado para dormir. Pena de eu não ter mexido na maquiagem dela. E saímos felizes. Porque, se ela tivesse ido à casa da vovó na véspera de Natal, eu provavelmente não estaria ali. E é assim que Deus escreve. Certo. Nós é que entortamos as linhas. E eu me fui com a certeza de que Deus me ama. É mais um jeito que Ele tem de dizer.

Verónica Vidal - Quem tem ouvidos ouça

Natal II - A Morte do Boneco de Gengibre

Eu bem que tinha tentado trazer a novidade européia do biscoito de gengibre para o nosso Natal brazuca, mas ele não resistiu ao calor dos trópicos e desmanchou-se todo. Foi igualmente comido, mas nunca virou um homenzinho. Minha sobrinha pergunta: E não vai haver pudim de leite? Claro, eu faço o pudim para ela. São duas meninas completamente diferentes na personalidade, as minhas sobrinhas. Uma, com a doçura do mel, que já se adivinha a suavidade. A outra, com sabor a sapoti, mais rara, é preciso tirar a pele, e quem provou nunca mais esquece. Chegamos enfim à polémica do pudim: Valéria insistia que o pudim deveria levar 5 ovos e eu usei 6. E lá ficou aquela discussão infantil entre duas mulheres pra lá dos quarenta acerca da diferença de um ovo no pudim. Por mais idiota que se possa parecer, essas são coisas que só acontecem com irmãos. E eu sinto muita falta de discussões por um ovo, ou por quem vai sentar ao lado da mamãe. Mas o pudim ficou um espetáculo. O calor na cozinha era intenso e meu marido preparava o bacalhau - genuíno português, trazido em genuíno contrabando, escondido nas malas, entre vinhos e azeites. Afinal, como casar com um português, levar o português ao Brasil e não levar um bacalhau português no Natal? A alfândega que reveja seus processos, pois isso cria problemas familiares sérios, e a lei na minha família é primordial. O bacalhau foi feito em dose dupla. Já que teríamos dois natais. A cozinha fervia. O ventilador que lá estava para amenizar o calor, começava a tomar as formas do Tom Cruise. Passei a amá-lo com intensidade.

Partimos para o primeiro Natal. Eu com uma travessa de Bacalhau à Gomes de Sá ao colo, mala do carro cheia de presentes, fomos buscar Thaissa e seguimos para casa da vovó.

Saímos da casa da vovó antes das duas da manhã. Eu conduzia um carro alugado, que teimava em ter a embreagem mais alta do que o meu pé pequeno e que me obrigava a levantar a perna a cada mudança de marcha. É, confesso. Tenho preguiça de dirigir. Sou daqueles condutores de um carro só, cujo veículo vai praticamente sozinho de casa para o trabalho e que, quando precisa mudar de carro ou de percurso, ou se perde ou fica à procura dos botões de acender faróis, alavancas de limpa-para-brisas. Mas, não havia remédio. Eu tinha feito um acordo com o maridão de que, desta vez, ele podia estar à vontade para um ou outro copo de cerveja que eu conduziria na volta. Promessa é dívida. E sem GPS.

Minha memória falhou pouco e conseguimos cruzar a Serra Grajaú-Jacarepaguá e ao passar pela Teodoro da Silva, em Vila Isabel, minha infância e adolescência ainda martelavam aqui na memória. Era um tal de "morei ali", "estudei ali", e assim cruzamos o Rebouças e chegamos à Lagoa, ao Humaitá, onde vive a minha irmã que nos hospedou, mais espcificamente no quarto da minha sobrinha Taila, que cedeu, feliz e contente, seu quarto para a nossa estada. Encontramos acordados alguns dos remanescentes celebradores natalinos. Ainda haveria o Dia do Natal. O dia 25. A troca de presentes das filhas da D. Lina. Nestas horas, o meu pai sempre teve papel secundário, como eram os pais na maioria dos casos, pelo menos os da minha época de menina. Éramos as filha da Lina, e assim permanecemos, até hoje. E a organização da mesa de Natal e das festinhas ainda têm um quê da mamãe. 

Dormimos, acordamos e, quem estava já estava e quem não estava foi chegando. As filhas da D. Lina se multiplicaram em mais filhas, maridos, noivos, enteados, gatas e peixes. Por aqui não há a organização portuguesa de sentarem-se à mesa para almoçar ou jantar. Sentamos à mesa, sim. Mas levantamos, e sentamos de novo, ou levantamos e sentamos na almofada se não há lugar para todos. Nunca alguém deixou de ser convidado por falta de cadeiras e nunca alguém deixou de ir por falta de convite. E trocamos presentes. Claro, é Natal! Trago comigo todos os dias o cheiro deste Natal, pois meus presentes ou têm cheiro ou os carrego junto a mim, e cheiros despertam-me memórias. Minhas filhas riem de tudo e riem de nada. Minhas sobrinhas fazem o mesmo. E percebo que eu e minhas irmãs não somos diferentes. Temos apenas um pouco mais de anos e um pouco mais de quilos, já que acumulamos mais natais do que elas e ninguém passa incólume a uma mesa como a nossa.

Verónica Vidal - de perto, todos são loucos. Mas nós somos um bocadito mais. E eu gosto.



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Natal I - Tradição existe para ser quebrada

 Os tempos por cá andam difíceis, toda a gente a reclamar da falta de dinheiro, muitos a perderem seus empregos e os negócios levando mais calotes do que se pode suportar. Assim sendo, ficou decidido que nestas férias eu daria a conhecer ao meu marido, in loco, duas das coisas que mais amo: O Natal na Casa da Minha Avó e o Reveillón de Copabana. Sem dúvida, é um desafio colocar aqui, em poucas palavras, eventos memoráveis como esses. 

Voltar para casa em épocas festivas tem sempre um sabor diferente. Comigo também é assim, claro. Ando fora do meu ninho há uns 10 anos, e passar Natal e Ano Novo em casa, é tudo no melhor estilo "De Volta Para o Passado".

Na falta de uma máquina do tempo, compramos uma passagem Lisboa - Rio pela TAP. Logo na chegada, fomos recebidos pelo delicioso bafo quente da minha cidade maravilhosa. Irmã, cunhado, sobrinho, filha e genro à minha espera no aeroporto. Porque brasileiro é assim. Nada de pegar táxi. Família espera mesmo é no aeroporto, ainda que o avião chegue de madrugada e atrase horas. E ali percebi que minha família me ama. É um jeito de dizer sem falar.

E isto acabou por virar um conto, e já que assim é, comecemos então por um capítulo.


Natal I - Tradição existe para ser quebrada


Fomos dos primeiros a chegar à casa da vovó. Lá estavam já alguns primos baianos acariocados, sua filhota fofa, minha tia miss Rio de Janeiro que abaianou e um amigo-gente-boa, que já tinha sido de tudo que era lugar mas aportou pelo Rio e ali foi ficando, por força da vida, por força das amizades, por força daquele não-sei-quê que a gente nunca sabe. Toni. Gaúcho. Era mais um sotaque, mais um na família, porque assim é que é, vai-se abraçando quem chega e quem chega vira dono e toma pedaço.

Logo aparece meu irmão, e eu esmago com abraços um homem feito, como se ainda 5 anos tivesse. Já não o via há tanto tempo. E conto-lhe do dia em que havia esquecido dele em casa. Foi numa festinha de aniversário da minha filha Camila, que iríamos comemorar no Corcovado. Meti a criançada no carro e seguia pelo túnel quando, diante do burburinho das crianças no carro eu reclamo: "Meninas, fiquem quietas, o único que está quietinho é o Washington"  E elas imediatamente respondem: "Mãe, o Washington não está aqui". Eu tinha me esquecido de ir buscá-lo! Ele devia ter uns 5 anos, na altura. Deixei as crianças junto aos outros pais, próximo ao lugar da festinha e corri de volta para buscar meu irmão. Com 5 aninhos ele estava todo arrumadinho, sentadinho na cama, a baloiçar os pezinhos e disse: "Você demorou!". Não lembro da minha explicação, mas decerto que não foi a verdadeira. Como dizer a uma criança de 5 aninhos que ela havia sido esquecida? Pois só agora, passados tantos anos, confessei meu pecado. Foi catártico.

Meu irmãozinho cresceu. Está noivo e dirige. Ele é fruto do segundo casamento do meu pai, que já por cá não anda, mas sua mãe lá estava, e, apesar de pequenina, com razão cresce uns poucos centímetros de orgulho que tem nele. Coincidência ou não, minha avó só decidiu entrar em cena depois que meu manito chegou. Até então, para ela, a festa de Natal ainda não havia começado.Tive uma ponta de vaidade por isso. Coisa feia esses sentimentos que teimo em não arrancar de mim.

Uma ou outra coisa muda, como a churrasqueira que já foi um monte de tijolos amontoados num canto ao pé da jaqueira, depois ao lado do muro e agora deu lugar a um aparato todo tecnológico, com entradas e saídas de vapor, e coisas do tipo. Fiquei achando que seria preciso tirar cursinho para usar a churrasqueira nova. Mas a verdade é que o churrasco estava lá. A turma do muro, aqueles que ficam mais perto da cerveja e dos petiscos, também lá estavam, bem mais contidos do que outrora, já que a lei seca não perdoa e o guaraná vira então o rei da noite, e isso só serviu para provar que álcool nunca fez falta para a alegria da festa. Havia um diversidade de petiscos, mas o sucesso geral foi a sacanagem. Nunca dei tanta credibilidade ao sabor em si, mas quem batizou esta mistureba espetada num palito é um génio. Anónimo, mas é. Você não sabe o que é sacanagem? Monique manda a receita. Guilherme faz. Na próxima, vai rolar até um molhinho. Ou não, sei lá. Sempre alguma coisa fica esquecida. É tradição nas festas da minha família e ainda assim está tudo muito bem.

Minha filha armou-se em criança e foi brincar de Polly, com a desculpa de montar o brinquedo da priminha, já que a distribuição de brinquedos para os menores foi mais cedo, uma vez que cambaleavam de sono e já ameaçavam com o chororô típico dos dois, três aninhos. O calor intenso nos obrigava a ficar na varanda, onde a festa estava animada pelo som de gosto tremendamente duvidoso do vizinho, mas ajudando na economia da contratação de um DJ para a nossa própria balada. De qualquer forma, ninguém se lembraria mesmo da música que tocava, pois a conversaria era tanta até que se faz tarde demais e nada da minha madrinha chegar. Como eu já disse, minha madrinha é minha tia, mas madrinhas e padrinhos são tios especiais, e a minha é a mais especial de todas, pois, além de ser minha, é madrinha de praticamente todas as crianças da família, grandes e pequenos, para o meu ciúme mortal. Preciso expurgar isso do meu coração. Coisa feia.

O que eu nunca disse, é que ela sempre foi uma atrasilda*, mas era perdoada pelo atraso pois vinha acompanhada de uma travessa com um quitute delicioso. Mas ela não foi. O quitute também não. E eu chorei. Porque esqueci que eu já era adulta e tinha entrado na minha máquina do tempo, no meu "de volta para o passado". E chorei muitos baldes de choro, pois as crianças de três anos já tinham recebido seus brinquedos e eu não tinha recebido o meu. E porque não se pode entrar numa máquina do tempo assim, sem mais nem menos, pois o dono do tempo é Deus. E eu nem sabia que Ele estava preparando para mim o meu presente de Natal. 

Lágrimas secas, minha tia miss, que sempre agitou a criançada e nunca deixou a peteca cair fez-me lembrar a minha avó. A lágrima pode durar um minuto, mas a alegria, há que perdurar para sempre. Porque é verdade.

Era a hora da oração, já quase meia noite. Era hora de distribuir presentes, de abraços e beijos, de Feliz Natal, de amigo oculto.

E a foto oficial ficou esquecida. Sempre alguma coisa fica esquecida. Mas ainda assim, fica tudo bem.

E a Monique me disse, uns dias depois, que no dia seguinte meu padrinho tinha ido de manhã à padaria comprar pão.




Verónica Vidal - Aprendendo que amor, tempo e festa, são coisas transcendentais. Não podem ocupar um um espaço determinado. Vou perceber um pouquinho mais disso, daqui a pouco.


* Nota do autor - Palavra inventada por alguém, ou por mim mesma, sei lá, porém sem registro autoral.