101 anos de vovó Alice |
Na minha cabeça, a minha avó
Alice já nasceu avó. Sempre foi assim e assim seria para sempre. Só depois de
muitos anos, quando eu me tornei avó, percebi que não existe uma palavra que
defina essa transição. Para as mães, temos a maternidade, para os pais, a
paternidade, mas e para as avós?
A vóternidade, assim, com acento
agudo, palavra impossível na nossa língua, é vivida de forma intensa, ainda que
sutil, pela minha avó Alice. Ela foi se tornando mais avó à medida que mais
netos lhe nasciam, de tal forma que a sua vóternidade é hoje majestosa,
imperial. Rio-me às gargalhadas quando atribuem longevidade ímpar à Rainha da
Inglaterra, com apenas 95 anos. Minha avó Alice, na simplicidade dos seus 101
anos não alardeia fama, mas é a pessoa que governa a família inteira com um
sorriso nos lábios e ao som de um Michel Teló na TV. E, convenhamos, a minha
família mágica é muitíssimo mais importante do que toda a Grã Bretanha. Somos
mais bonitos, mais simpáticos, mais divertidos e os nossos protocolos reais são
seguidos sempre à risca: Há sempre festa. Não importa como ou quando,
celebraremos.
Hoje, nos dias em que a vida me
corre ao avesso, lembro-me da minha avó, ainda outro dia, a ouvir Roberto
Carlos, sorrindo, de frente para a TV e sentada na sua cadeira de rodas. Ela
dançava com os braços, e assim dizia-me que é importante que sejamos felizes
com o que temos. E todas as minhas preocupações que então pareciam enormes,
diminuíram de tamanho até que se desvaneceram totalmente. Vovó sempre ensinou-me
sem palavras. E eu sigo o exemplo da minha avó Alice. Porque Deus não permite
que uma pessoa complete 101 anos se a sua sabedoria não for superior à de todos.
Minha avó Alice sabe das coisas.
Fui construída com as memórias
que me ficaram gravadas no coração, feito tatuagem, para nunca mais saírem. De
todas as minhas memórias a casa da minha avó lá está, viva, pulsante,
barulhenta e cheia de amor. A minha família ganhou um nome, “a casa da minha
avó” e ela é mesmo assim, um oásis de amor em meio a um mundo tumultuado. Cada
vez mais espalhados pelas terras deste mundo, as sementes da minha avó derramam
lágrimas de saudades, gargalhadas de alegria, abraços e beijos, tudo ao mesmo
tempo. Oramos fervorosamente a Deus e contamos anedotas menos pudicas quase que
na mesma frase. E é a minha avó Alice quem tudo orquestra, como se de longe
estivesse, mas está tão imiscuída dentro de cada um de nós que já fica difícil
separar quem somos, porque somos todos “a casa da minha avó”: Cada um de nós
tem um pedaço dos natais, das festas, dos desempregos, das crises, dos
casamentos, dos nascimentos, do tio Tão, do tio Jara e do papai, da Andréia e
da tia Tete, da tia Leca e da mamãe, do avô Moacir e da Tide. Somos muitos, mas
somos um só.
Feliz aniversário, vó. Confesso
que ainda tenho ciúmes de ti, sei que é uma coisa infantil, às vezes queria ser
a única neta. Mas no fim das contas sei perfeitamente que todos nós somos tu,
vó. Confesso também que era eu que roubava o amendoim do topo dos cajuzinhos,
mas isso é outra história. Beijo.
Verónica Vidal