quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Pedaços de mim

Vou deixando pedaços de mim pelos caminhos da vida. Mutilo-me a cada mágoa, a cada tristeza, a cada golpe. Meus olhos vêem hoje diferente de como viam dantes. As cores do verão são a cada dia mais cinzentas e é-me difícil sorrir da mesma forma que sorria antes. A neve das terras altas, dantes tão imaculadamente branca, é hoje lamacenta do degelo. As flores dos vasos desapareceram e o verde das folhas amarelaram. 

A lama sempre lá esteve. As folhas ressequidas sempre estiveram misturadas às verdejantes. Mas meus olhos nunca a viram. Eu admirava com prazer o colorido das flores que hoje não mais existem. Sou o resultado de tudo aquilo que permiti que me influenciasse, que me encantasse, que me tocasse o sentimento. E fechava os olhos para o inverno da vida a fim de me convencer de que o sol brilharia sempre, só porque era esse o meu desejo. O choro era de outrém. A dor nunca foi minha. 

Felicidade é um estado de espírito que pede cultivo. E eu a alimentava com alegria, com a vitória do outro, com a boa disposição para o mundo. Adubava a minha felicidade com o sopro do vento, com a esperança de vida. Tentava injetar amor sozinha, como quem se droga, para não ver a falta de amor que rondava à minha volta. Mas a vida é como tempestade: assola-te sem piedade, derruba-te se insistes em ficar de pé. Anula-te, só para mostrar que é assim que deves viver, que é isso o que mereces, o nada. E aceitei. E o véu se descortinou de diante dos meus olhos e vi. Vi a fealdade da vida, os excrementos dos vizinhos, senti o cheiro fétido do ar. Ouvi a maledicência que saía da boca do sacerdote, senti a faca que se enfiava nas minhas tripas pelas mãos dos que eu dizia amar, notei os vergões de chicote nas minhas costas, os grilhões que prendiam os meus pés, numa escravidão torturante e silenciosa. 

Hoje arrasto as minhas correntes pela casa, feito alma penada. Ainda penso em fingir felicidade, mas perdi o jeito, esqueci o texto e desisto. Espero que as semanas passem rápido, que os meses se atropelem que a vida se finde. 

Verónica Vidal





sábado, 11 de abril de 2020

O Amor em Tempos de Covid

10 de Abril de 2020. É Sexta-feira Santa.
A maior parte do mundo está de quarentena, encerrada em casa. A humanidade está enferma.
Muitos choram e lamentam os seus mortos. Outros bravos nascem em meio à pandemia que se instalou. Mas para a minha família há um motivo especial de celebração: É o aniversário da minha avó Alice.

E foi assim que celebramos os 99 anos da minha avó: Cada um da sua casa, tateando uma tecnologia que ainda é nova para muitos mas que nos fez ficar juntos por deliciosos minutos. E lá fomos nós, superando as dificuldades de vídeo, de áudio, juntarmo-nos para cantar os parabéns à avó Alice e revermo-nos um bocadinho. E toda a gente falava ao mesmo tempo, tal e qual a varanda da casa da minha avó. E tantas gerações ali se juntaram, tantas famílias ali reunidas, pura e simplesmente por amor. E minha avó nos via, a todos, e sorria, e demonstrava uma felicidade genuína, simples, de quem está acostumada a ver os anos passarem e as mudanças da vida transformarem tudo, até mesmo as festas de aniversário. E fizemos as fotos mais feias de toda a história dos encontros. Só que mesmo nessa imensa bagunça de rostos misturados e captados numa fealdade hilária e torta, com cabeças cortadas e imagens desfocadas, vê-se uma alegria quase palpável, uma felicidade que grita.

A minha família não tem uma árvore genealógica. É formada por um jardim genealógico, posto que outras árvores entrelaçaram seus ramos na nossa, de tal forma que nos é praticamente impossível definir a origem de todos. Eu tentava explicar à minha filha quem era quem, filho de quem, neto de quem e perdi-me no meio do caminho.

Minha avó atravessa uma estrada pedregosa há 99 anos. Pelo caminho precisou despedir-se de dois maridos, quatro filhos e uma neta. Enfrentou doenças complicadas e cirurgias perigosas. Nunca, nunca deixou-se vencer pelas perdas. E talvez seja por isso que a celebração de cada aniversário dela tenha uma importância agigantada para nós. Muito mais do que um aniversário, celebramos a vida, o amor, a família, as raízes, a aceitação do outro. D. Alice nunca foi mulher de grandes e célebres frases, mas sim de grandes e indeléveis atitudes.  E o bem contagia. Contagiou-nos a todos. Somos uma família do bem, um jardim de amor. A humanidade precisa de mais avós Alice espalhadas por aí. E assim, ela será curada.

Verónica Vidal - tentando levar a vida com a mesma positividade da avó. 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Amar desmesuradamente - Crianças Bichos e Outros Patifes

Livro do acervo de Verónica Vidal

Não é segredo para ninguém que eu seja amante de livros. Tenho os meus gostos particulares, mas em geral sou até bastante eclética. Mas é que, como toda a gente que tem as suas manias, eu tenho cá as minhas. Quando apaixono-me por um autor, leio tudo o que brota ou já brotou das suas ideias e assim a minha estante vai se enchendo de nomes. É assim com Valter Hugo Mãe, Haruki Murakami, Margareth Atwood, Saramago, Eça de Queirós, Garcia Marquez, os Kepler, Isabel Allende e por aí vai.

Cada um dos autores me foi apresentado de forma diferente. Uns por livreiros, outros foram presentes de amigos, uns tantos caíram nas minhas mãos ao fuçar na livraria.

Até que eu fui à apresentação de um livro, aqui em Coimbra, autor local. "O Diário de um Morto", de Pedro Guimarães. Apaixonei-me pelo livro. Ou melhor, apaixonei-me mais especificamente pela narrativa, o que conferiria ao escritor um lugar de destaque na minha estante e a certeza de que seu livro seria lido umas duas ou três vezes. Problema: Era o primeiro livro do escritor e eu não teria mais nada dele para ler. Sem remédio, tive então que aguardar o próximo. Quem gosta mesmo da linguagem de um autor e tem prazer em ler, sabe bem do que eu falo. Vamos lendo um livro e outro, e outro, mas temos aquele fisgado, o objeto do nosso desejo, à espera de sair do forno. E, quando sai, vamos cheios de espectativas devorá-lo. E assim foi.

"Crianças, bichos e outros patifes" conta-nos as peripécias de um menino desde o seu nascimento até à maturidade dos seus sete anos, na convivência com o seu avô e restante família, incluindo cães, gatos e caracóis. Mais do que a vida de uma criança, lê-se nas entrelinhas o amor desmesurado de um avô. É um livro escrito como se de um diário se tratasse, como se tivéssemos a cavucar num baú e lêssemos a vida do outro, em condições tão parecidas com as nossas próprias. Impossível não nos identificarmos em várias das situações. Completamente despretencioso, numa linguagem fluida, leve, como uma conversa na varanda, o livro é um refresco para a alma. Faz-nos rir e esquecer que a conta de luz está pela hora da morte, o combustível aumentou e que agora temos que tomar medicação para a tensão alta.

A má notícia: Por enquanto só vende aqui em Portugal. Vocês terão que me vir visitar.

Verónica Vidal - única proprietária do livro da foto, um bocado para o amassado pelas andanças da vida.