sexta-feira, 5 de abril de 2019

Confissões de uma neta

Olá, vovó.
Eu não estarei presente à festa de aniversário dos seus 98 anos este ano.
De novo.
Vovó, eu preciso confessar algumas coisas que me apoquentam a alma, já há algum tempo:

Vó, eu confesso que sempre senti ciúmes do seu amor pela minha irmã Valéria. Por quase toda a vida. Só mesmo quando eu me tornei avó, depois de nascido o meu segundo neto, é que percebi que esse era um ciúme infundado. É-nos impossível amar mais um neto do que o outro.

Vó, eu confesso que nessas questões de amor eu fui muito insegura. Lembro da vez em que eu chorei feito uma desalmada porque estávamos todos na praia de Sepetiba e minhas pernas ficaram cheias do lodo negro que havia por lá. Voltamos para a casa e eu chorei ainda mais alto para demonstrar todo o meu sofrimento e você só me disse: "Não é preciso chorar, lava que isso sai". Naquela época era um infortúnio monumental, mas hoje ainda uso essa frase para os dramas da minha vida: Não é preciso chorar, isso sai.

Vó, eu confesso que muitas vezes não entendia o porquê da Licinha ficar na casa da tia Norma e nós ficarmos na casa do Sr. Rufino, lá em Iguaba. Pensava que as férias haviam de ser todas juntas numa mesma casa. Demorei a entender que as casas não comportam todas as pessoas que eu quero. Às vezes ainda não entendo, acho que sou meio gato: Se tem um cantinho que cabe uma pessoa, dá para ficar. Mas sei que não é assim que funciona.

Vó, eu confesso que abria o armário que tinha por trás do espelho no banheiro da sua casa. De todas as casas, todas as vezes que ia. Nunca me curei disso. Até hoje, vez por outra, abro o armário do banheiro das pessoas e vejo as marcas das pastas de dentes, as escovas de dentes penduradas nos suportes, um ou outro remédio. No seu armário havia mercúrio-cromo. Como eu amava isso! Na minha casa era merthiolate, que ardia feito pimenta na ferida.

Vó, eu confesso ter usado o seu perfume um dia, quando dormimos na sua casa na Gonzaga Bastos. Fui ao seu quarto, abri o frasco de perfume mais bonito que havia ali, coloquei um pouquinho e sorrateiramente fechei-o. Pensei que nunca iria descobrir, até me tornar adulta e perceber que, obviamente, você sabia, sempre soube, deve ter-lhe cheirado de longe. Mas nunca ralhou comigo por isso, nem por nada. Hoje eu também relevo muitas traquinices dos meus netos porque sei que é pura curiosidade. Aprendi a relevar coisas com você, vó.

Eu tenho muito mais coisas para confessar, mas acho mesmo que todas elas você já sabe. Meus irmãos e meus primos devem também ter confissões a fazer, mas também essas você já conhece de antemão. Eu peço desculpas por estar longe. Ter um neto longe, ainda que tenhamos muitos por perto, é sempre uma dor, uma falta, uma tristeza. Acredite vó, também sinto que sempre falta um pedaço de mim. Mas é assim que funciona. Pode ser que um dia, mais à frente, a vida fique compreensível. Enquanto isso, aproveitemos o que nela há de bom. Isso, eu também aprendi com você. Não com palavras ditas, mas por essa osmose que me faz sugar o melhor do conhecimento e sabedoria de vida que você tem, vó. 

Feliz aniversário, vó. 

Verónica Vidal